Pelo título, os senhores leitores são induzidos a pensar numa pungente história de amor ao próximo, de solidariedade, de fraternidade entre iguais. E bem podia ser, não fossem alguns espíritos maléficos que por aqui vegetam, e que fazem do lugar terra um sítio quantas vezes inóspito para habitarmos.
Esta é mais uma história de Macau, do ano de 1996, e tem como protagonista um dos meus colegas (que por decoro não vou mencionar o nome) e uma anciã ceguinha.
Sempre que saíamos do Hotel Lisboa, deparávamo-nos com uma velhinha chinesa a quem
Deus tinha tirado a capacidade de ver. Ela ali estava na rua, de cócoras como os chineses apreciam estar, e com um megafone encostado à boca. Não sei bem se pelo seu problema de visão, o megafone não estava bem encostado à boca. Estava de lado, pelo que as lindas melodias chinesas que a velhinha cantava, não eram perceptíveis para nós, quer pelo texto, quer também pelo ruído da rua que era mais amplificado que a voz da senhora. Ainda assim ouvíamos uns esgares orientais, esgalhados sobre escalas pentatónicas.
Também reparámos que sempre que algum passante lhe atirava para uma lata uma moeda, a ceguinha, de tacto apurado, lá ia com a mão para aquilatar do tamanho da generosidade. As patacas são moedas muito recortadas e com certeza a senhora não tinha qualquer dificuldade em reconhecê-las.
Ora, um meu colega de grupo (que não escrevo o nome), num dos dias, disse-nos que ia ser benemérito e gratificaria a cantante do megafone. Assim que nos aproximávamos dela, lá ele ia preparando a moeda para, seguindo a tradição local, a arremessar para a lata das ofertas. Foi neste momento que se revelou o espírito do demo e vejo na mão do cantor das vozes, não uma moeda macaense, mas sim uma patela bem portuguesa, no valor de vinte escudos.
Depois de atirada a moeda, foi ver-nos (eu não queria… fui obrigado) parados uns metros mais à frente, a assistir ao reconhecimento da oferta por parte da senhora. E acreditem, a senhora ficou bem confusa, porque apesar de os nossos antigos 20$00 serem bem recortadinhos, não havia nas moedas locais nada que se assemelhasse.
Espero que ao relembrar esta negra história, o meu parceiro cantor (que me recuso a dizer quem é), sinta o peso natural das más acções e se dirija a Santa Catarina para gratificar convenientemente o amblíope que por ali pára com o seu Casio, e que toca as para todos nós, mais belas melodias populares.